No final de 2023, foram editados o Convênio ICMS nº 178/2023 e a Lei Complementar nº 204/2023, chamando a atenção para o tema do ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa, e, por consequência, para a questão do crédito que se acumula no estabelecimento remetente nesse tipo de situação.
Como é sabido, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente, em 19.4.2021, a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 49-RN (ADC 49), que fora ajuizada para tentar preservar a cobrança do ICMS sobre o mero deslocamento físico de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte, sem que houvesse nenhum tipo de compra mercantil.
A Corte reafirmou a sua jurisprudência sobre o assunto e, indo além, declarou inconstitucionais: (i) o artigo 11, § 3º, inc. II, da Lei Complementar nº 87/1996, que afirmava que seriam autônomos cada estabelecimento do mesmo titular; (ii) o artigo 12, inc. I, no trecho em que considerava ocorrido o fato gerador do ICMS quando da saída da mercadoria para outro estabelecimento do mesmo titular; e (iii) o artigo 13, § 4º, que instituía bases de cálculo específicas para o imposto nas transferências interestaduais.
Exatamente dois anos depois, ao julgar os embargos de declaração opostos na ADC 49, o Supremo Tribunal modulou os efeitos temporais da decisão para o exercício financeiro de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até 29.4.2021, data de publicação da ata do julgamento de mérito da ação.
O julgamento dos embargos baseou-se no voto do seu relator, Ministro Edson Fachin, tendo sido vencidos, em parte, os Ministros Dias Toffoli, Luiz Fuz, Nunes Marques, Alexandre de Moraes e André Mendonça, que divergiram com relação à modulação dos efeitos da decisão.
Segundo a opinião vencedora: (i) o julgamento da ADC 49 não traria riscos quanto ao estorno dos créditos das operações anteriores, pois a decisão da Corte fora clara em determinar a irrelevância da transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte para fins de ICMS; (ii) a declaração de inconstitucionalidade quanto à autonomia dos estabelecimentos do mesmo titular, prevista no artigo 11, § 3º, inc. II, não se estenderia à exigência do cumprimento de deveres instrumentais; e (iii) o risco de revisão de incontáveis transferências realizadas e não contestadas nos últimos cinco anos, justificaria a modulação dos efeitos da ADC 49, a fim de evitar um indesejável cenário de macrolitigância fiscal.
Convênio ICMS nº 178/2023 e Lei Complementar nº 204/2023
Após uma primeira tentativa de tratar do tema, por meio do Convênio ICMS nº 174/2023, expressamente rejeitado pelo Estado do Rio de Janeiro, os Governos Estaduais e Distrital chegaram a um acordo, no Convênio ICMS nº 178/2023, veiculando as seguintes regras:
(i) na transferência interestadual de mercadorias é obrigatória a transferência de crédito do ICMS do remetente para o destinatário;
(ii) a transferência se dará a cada remessa, mediante emissão de nota fiscal com destaque do imposto, o qual será lançado a débito na escrituração de saída do remetente e ,a crédito, na de entrada do destinatário;
(iii) havendo saldo credor remanescente no estabelecimento remetente, este será apropriado junto à Unidade Federada de origem, observando-se a sua legislação interna; e
(iv) o ICMS a ser transferido e destacado na nota fiscal corresponderá ao cálculo por dentro da alíquota interestadual pertinente, aplicada sobre: (iv.i) o valor correspondente à entrada mais recente da mercadoria; (iv.ii) o custo da mercadoria produzida (matéria-prima, material secundário, mão de obra e acondicionamento); ou (iv.iii) tratando-se de mercadoria não industrializada, a soma dos seus custos de produção (insumos, mão de obra e acondicionamento).
Por sua vez, a Lei Complementar nº 204, publicada em 29.12.2023, regulou o assunto do seguinte modo:
(a) revogou o § 4º, artigo 13, da Lei Complementar nº 87/1996, que fora declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal e do qual constava que, nas transferências interestaduais de mercadorias, a base de cálculo do ICMS seria: (a.1) o valor correspondente à entrada mais recente; (a.2) o custo de produção (matéria-prima, material secundário, mão de obra e acondicionamento); ou (a.3) tratando-se de mercadoria não industrializada, o seu preço corrente no mercado atacadista do estabelecimento remetente;
(b) deu nova redação ao artigo 12, inc. I, para nele manter, como definição de momento do fato gerador do ICMS, apenas a saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, excluindo a expressão “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, declarada inconstitucional na ADC 49; e
(c) acrescentar o § 4º ao mesmo artigo 12, da Lei Complementar nº 87/1996, prevendo que:
§ 4º Não se considera ocorrido o fato gerador do imposto na saída de mercadoria de estabelecimento para outro de mesma titularidade, mantendo-se o crédito relativo às operações e prestações anteriores em favor do contribuinte, inclusive nas hipóteses de transferências interestaduais em que os créditos serão assegurados:
I – pela unidade federada de destino, por meio de transferência de crédito, limitados aos percentuais estabelecidos nos termos do inciso IV do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, aplicados sobre o valor atribuído à operação de transferência realizada;
II – pela unidade federada de origem, em caso de diferença positiva entre os créditos pertinentes às operações e prestações anteriores e o transferido na forma do inciso I deste parágrafo.” (g.n.)
Vale observar que o Presidente da República vetou o § 5º, que se pretendia também adicionar ao artigo 12, da Lei Complementar nº 87/1996, com o propósito de assegurar, como alternativa, que o contribuinte opasse por equiparar a transferência a uma operação sujeita à ocorrência do fato gerador do imposto, com isso podendo considerá-la tributada e, desse modo, seguir o mesmo procedimento de tributação da transferência, para viabilizar a geração de crédito no estabelecimento destinatário.
O veto foi justificado sob o argumento de que a alternativa traria insegurança jurídica, tornaria mais difícil a fiscalização tributária e elevaria a probabilidade de ocorrência de elisão ou evasão fiscal.
Destaque-se a Nota Orientativa 01, editada recentemente no portal eletrônico do Confaz, na qual são veiculadas as seguintes orientações:
- A emissão das notas fiscais de transferência de bens e mercadorias seguirão a legislação vigente no ano de 2023, adotando-se os campos de ICMS já utilizados, ainda que não reflitam o significado jurídico da não incidência, para documentar o valor do crédito a ser transferido; e
- No campo de informações adicionais, deverá ser anotado que se trata de “Nota fiscal de transferência de bens e mercadorias não sujeita à incidência de ICMS, de que trata a ADC 49.
Segundo a Nota, essas regras são provisórias e deverão ser seguidas até a publicação de ato normativo que discipline o leiaute adequado para a emissão das notas fiscais em conformidade com o novo contexto legislativo.
Além disso, há de se ter atenção ao Convênio ICMS nº 228/2023, publicado em 29 de dezembro, segundo o qual “os Estados e o Distrito Federal, em relação às transferências interestaduais de mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade, até a regulamentação interna dos novos procedimentos, ficam autorizados a permitir a aplicação pelos contribuintes das regras de emissão de documento fiscal vigentes em cada Unidade Federada em 31 de dezembro de 2023”.
É importante estar atento, portanto, também para o que ainda dispõe a legislação de cada Unidades da Federação, as quais vêm tratando o assunto dos mais variados modos, muitas delas ainda prevendo a obrigatoriedade do pagamento do ICMS sobre as transferências, inclusive.
Discussões e oportunidades
O que se verifica, a partir do contexto acima resumido, é que a regulamentação editada ao final do ano poderá trazer dúvidas, discussões e oportunidades com relação à gestão do ICMS por empresas que realizem transferências de mercadorias entre diferentes Unidades da Federação.
Transferência será obrigatória?
A primeira discussão é se o destaque do ICMS nas notas e a transferência do respectivo crédito, calculado com base na alíquota interestadual aplicável, serão ou não obrigatórios, como quer impor o Convênio ICMS nº 178/2023 e algumas legislações locais.
A nosso ver, a resposta é negativa.
Além de inexistir imposição na Lei Complementar nº 204/2023, o que torna o Convênio ICMS nº 179/2023 ilegal, a não-cumulatividade do ICMS deve ser vista como uma garantia constitucional do contribuinte, a quem caberá decidir até que ponto, como e em qual extensão usufruirá esse benefício. Nas palavras do Ministro Dias Toffoli, no voto emitido nos embargos de declaração na ADC 49, “a dinâmica da partilha do ICMS entre estados de origem e de destino muito dependerá da escolha feita pelo contribuinte”.
Portanto, a depender da situação, poderá fazer sentido para o contribuinte não destacar o ICMS na nota relativa à transferência, a fim de manter o crédito das operações anteriores na própria Unidade Federal de origem, onde, eventualmente, as regras relativas à apropriação e ao aproveitamento de crédito acumulado sejam mais favoráveis.
Ou, do contrário, poderá fazer sentido destacar o ICMS justamente para escapar ao acúmulo de crédito na origem e, ao mesmo tempo, utilizar o crédito para compensação com o imposto devido sobre as operações subsequentes realizadas na Unidade de destino.
Tudo isso, aliás, levando-se em consideração também a eventual exigência de ICMS pelo regime de substituição tributária interestadual, quando o estabelecimento destinatário da transferência for varejista, no moldes do Convênio ICMS nº 142/2018.
De outro lado, o contribuinte deverá ter atenção para hipótese em que a legislação estadual conceda benefícios fiscais que sejam calculados em razão das suas saídas tributadas, o que por vezes ocorre no caso de créditos presumidos, para decidir como deverá proceder com relação às notas de transferência emitidas sob o novo regramento da Lei Complementar nº 204/2023, segundo o qual o ICMS pode ser destacado na nota de saída, mas esse destaque não representa a materialização da tributação da operação.
Quantificação do crédito a transferir
Chama também a atenção a divergência, entre o Convênio ICMS nº 178/2023 e a Lei Complementar nº 204/2023, com relação à base para quantificar o crédito a ser transferido de um para outro estabelecimento, em especial diante da revogação do § 4º, artigo 13, da Lei Complementar nº 87/1996.
Parece possível sustentar que a referida revogação deve ser lida em conjunto com a parte final do § 4º, inc. I, onde está consignado que o crédito a ser suportado pela Unidade Federada de destino, em razão da transferência da mercadoria, será determinado pela aplicação da alíquota interestadual pertinente sobre o “valor atribuído” à operação pelo sujeito passivo.
Ora, novamente, levando em consideração que se está a tratar da garantia do princípio da não-cumulatividade, cujo exercício pleno ou parcial é uma faculdade do contribuinte, parece possível dizer que a nova lei lhe outorgou a faculdade de calibrar o “valor atribuído” a fim de transferir, integralmente ou não, os créditos das operações anteriores relacionados à mercadoria enviada de um para outro estabelecimento da mesma empresa.
E isto lembrando, uma vez mais, que as variáveis relativas ao potencial acúmulo de crédito no estabelecimento remetente da mercadoria e à possibilidade de absorção do crédito no destino, mediante compensação com o ICMS que incidirá na futura saída realizada pelo estabelecimento destinatário da transferência.
Tomada a sistemática anterior ao julgamento da ADC 49 – que, eventualmente, o Congresso Nacional poderia ter decido repetir na Lei Complementar nº 204/2023 – a incidência na transferência interestadual surtia o efeito perverso de gerar crédito acumulado do imposto, o que, nos moldes do artigo 25, § 2º, da Lei Complementar nº 87/1996, somente poderia ser efetivamente aproveitado pelo sujeito passivo se assim permitisse a legislação estadual (o que, por vezes, não acontece).
Imaginando-se o contribuinte que comprou uma mercadoria por R$ 100,00, recolhendo 18% de ICMS, e que, posteriormente, a transferiu a outra Unidade da Federação, com o destaque de 12%, a sua operação automaticamente gerava o acúmulo de R$ 6,00 de crédito. Enquanto isso, no estabelecimento destinatário, o imposto a ser aproveitado como crédito para compensação na operação posterior era de apenas R$ 12,00.
Ao que tudo indica, a Lei Complementar nº 204/2023 buscou outro caminho para lidar com a situação, permitindo ao contribuinte “atribuir” à sua transferência um valor que lhe parecer adequado, para o efeito de transferir total ou parcialmente o crédito da operação anterior.
No exemplo dado acima, ao invés dos R$ 100,00 correspondentes à entrada mais recente (regra essa eliminada com a revogação do artigo 13, § 4º), poderia indicar o “valor atribuído” de R$ 150,00. Com isso, ao calcular o ICMS a ser transferido pela alíquota interestadual de 12%, o contribuinte chegaria aos mesmos R$ 18,00 que oneraram a operação anterior, assim realizando, de modo mais pleno, o princípio da não-cumulatividade.
A liberdade de atribuição do valor à transferência, no entanto, encontraria como limite precisamente o montante do crédito advindo da operação anterior. Afinal, havendo excesso no valor indicado na forma do artigo 12, § 4º, inc. I, o contribuinte estaria a transportar para o destino créditos não relacionados à mercadoria transferida, o que seria irregular.
A confirmar essa leitura possível do artigo 12, § 4º, veja-se que a regra do seu inciso II, quando afirma que a Unidade Federada de origem deverá assegurar a manutenção da diferença entre os créditos das operações anteriores e o ICMS transferido na nota fiscal, afirma que assim ocorrerá apenas “em caso de diferença positiva”. Admite, portanto, a possibilidade de não haver diferença alguma, a depender do “valor atribuído” que vier a ser praticado. Como se vê, é possível que essas e outras discussões derivem do Convênio ICMS nº 178/2023 e da Lei Complementar nº 204/2023, sendo fundamental que, na eventualidade de se considerar qualquer uma das possibilidades acima, o interessado esteja devidamente respaldado na opinião dos seus assessores legais, devendo estas e outras variáveis serem ponderadas para a tomada de qualquer tipo de decisão.